A dor da perda é uma fome virada para dentro. A dor torna-nos autofágicos. Consumimos as nossas memórias, as conversas que tiveram connosco, a desorientação que se abate na nossa ideia de nós próprios e da nossa vida sem... A dor consome-nos oxigénio dos nossos pulmões em esforço por respirarem por dois (por quem fica e porque foi). A impotência abraça-nos num pânico baixinho que cala a vontade de revolta ao mesmo tempo que amamenta a frustração. Somos feitos da carne que comemos quando estamos em sofrimento.
Na universo dos esoterismos, em especial no ocidente, fala-se muito em mistérios e conhecimento pautados por ciclos de renascimento. O Homem que acorda novo. A Mulher que acorda renovada. Estes estados de consciência alcançam-se muitas vezes da sequência sinuosa de aprendizagens das quais resulta uma morte (simbólica no físico, literal no espiritual) que levará o neófito/aprendiz/não iniciado a experimentar uma realidade nova, na qual ele vive e reclama esse recomeço voluntário de vida, esse renascimento prenhe de potencial que o aproximará das verdades essenciais que só se revelam quando tudo o resto que não interessa se anula ante o conceito da mortalidade enquanto ferramenta desejada, enquanto porta de renascimento.
Fala-se muito da dádiva da vida que inicia os mistérios dos que trilham as aspirações espirituais.
Falo-vos hoje da dádiva da morte não desejada, que nos inicia em consonância com a vida, e que nos leva aos outros mistérios, mais dolorosos, que nos transformam e impactam para o resto das nossas existências.
Perder quem amamos. Perdermos quem protagoniza papéis inquestionáveis na nossa vida. Quem, de tanto estar presente e/ou de tanta presença importante que teve, se enraizou na nossa vida, na nossa identidade, na nossa realidade concreta e abstracta, cuja voz ouvimos constantemente quando nos lembramos de quem somos e de quem queremos ser.
Perder quem amamos é uma merda. E é também, um ritual de iniciação profundo.
Nunca escolhemos esta via iniciatória porque o seu custo é tremendo, o caminho é penoso, as memórias ardem ácidas e geladas, a frustração arranha a garganta seca, a nossa cabeça lateja o peito que em fúria se debate e os nossos olhos procuram o alívio da saída de emergência. Não há. A revolta nasce na normalidade do que nos rodeia, e mesmo os toques pacíficos de quem empatiza são sal em ferida aberta na nossa incapacidade de alterar e reverter a dor. Não há reversão. E procuras quem se lembra. E procuras as histórias. E procuras invocar TUDO para que a dor se entorpeça por momentos. E lembras e ris. E dói. E a mortalidade pesa. E o silêncio que antecede a morte instala-se. E o ritmo normaliza impune. E o ar volta a aquecer lentamente. E o neófito escolhe: morrer com a morte ou matá-la. Voltar para trás não é possível. E para a frente, um tipo de orfandade nos espera. Matar ou morrer. E a escolha é feita, lentamente, várias vezes durante o dia. Todos os dias depois deste. E a morte do mistério vai se tornar a família que se perdeu. E a vida que aurora traz, é nossa de novo. E a dor que separa a carne do osso, dá-te à luz sempre que te lembrares que quem te iniciou morre para que tu voltes a nascer.
Hoje e sempre meu amor. Hoje e sempre.
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