Conversa de Bruxa: a armadilha da abundância





Segundo o dicionário, a.bun.dân.ci.a é um nome feminino que originou do latim abundantia, -ae, e que significa "quantidade maior que a precisa", riqueza, fartura.

As palavras têm poder, certo?

Vivemos sob a chaga do consumismo que se alimenta de imagens e mensagens que nos aliciam para o muito, para o excesso, para o que ultrapassa o que é essencial ou necessário. Abundância remete precisamente para este universo. E se a ideia é utilizar só a palavra mas evocar o pensamento ecológico e auto sustentável, então volto a lembrar:

As palavras, têm poder.

Quando me foco na palavra abundância, estou a sob-quantificar um estado de mente e espírito, mas a abundância em si não devia sequer ser uma meta, devia ser um método para chegar a algum lado. Então porquê a obsessão com a palavra abundância e não na meta dela? A meta dela, suponho, que seja o bem estar. Mas a pergunta que me queima quando vejo a abundância é, eu preciso de ser abundante ou ter uma vida abundante para alcançar o bem estar? Intuitivamente respondo não. A abundância não é necessária. O que é necessário é equilíbrio de recursos e necessidades. É, na verdade, reduzir o ruído dos chavões e palavras atractivas e que enchem o ego e focar no que importa. E esta é a minha primeira crítica à onda da abundância que anda em voga. Porque, e repito, as palavras têm poder. 

A outra crítica que apresento é a da instrumentalização a la carte de culturas e tradições que foram desenvolvidas por quem se comprometeu e compromete com aquela cultura particular e não por quem as escolhe no menu das práticas iluminadas e esclarecidas. Exemplo: desafiar pessoas (indiscriminadamente) com chavões que nos são familiares (como abundância) e distribuir práticas que envolvem recitação de mantras e técnicas de meditação que foram importadas de tradições íntegras e que desta forma ficam completamente desfasadas do seu enquadramento e contexto espiritual e cultural. E tudo isto sem uma pessoa manifestar a pergunta "Caminhas nesta tradição ou estás dedicado a uma tradição semelhante?" ou ainda, mais ousado "Caminhas numa tradição diferente desta? Isto faz-te sentido tendo em conta o teu caminho?" ou "Esses mantras são composto por palavras em sânscrito, queres saber o que significam para saberes o que estás a entoar?". É que as assumpções prejudicam e o que até podia ser uma oportunidade formativa e de exploração consciente de uma realidade diferente transforma-se num certificado de preces, cânticos com sons bonitos e mecânica de respirações que independentemente do efeito benéfico que despertem, vão continuar a ignorância relativamente à cultura e às realidades que pariram aquelas tradições. O "outro" (seja uma pessoa, entidade, ou um tipo de conhecimento) deixa de ser uma porta para conhecer o que se desconhece e passa a ser um confortável e perverso "é tudo igual". 

A alteridade é das maiores riquezas que a humanidade manifesta (seguida de perto pela pizza). Mas a força na diversidade só cumpre a função se nos permitirmos ao desconforto de ver o que é diferente e não ter medo de o aceitar enquanto diferente. Quando uma abordagem familiar se constrói em cima alicerces tão diferentes da nossa realidade, algo vai inevitavelmente ser comprometido e perder-se no processo. Por isso é que (mais do que abundância) o equilíbrio e a sustentabilidade aliadas ao conhecimento deveriam ser o caminho e a meta. Porque, mais uma vez, as palavras tem poder.


Referências:

"abundância", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [online], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/abund%C3%A2ncia [consultado em 15-07-2020].

"pizza is life", in Urban Dictionary, [online], https://www.urbandictionary.com/define.php?term=Pizza%20Is%20Life [consultado em 15-07-2020].

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