Carnaval no Paganismo em Portugal


Bom, vamos lá falar disto. O Carnaval em Portugal e o Paganismo.
Começo por alvitrar os leitores de que este é o primeiro ano em que vivo num local onde esta festa é levada a sério (nota-se o entusiasmo?!), por isso, espero retirar uma série de dados informativos durante esta época relativamente às vivências tradicionais de quem se prepara o ano TODO para estes três dias de farra.
Do ponto de vista histórico, o Carnaval remonta às antigas celebrações que visavam a expulsão e o exorcismo do Inverno, através de uma fórmula que dissolvia as regras sociais normais e que se centrava na prática faustosa de excessos e prevaricações. O quadro acima ilustra alguns destes (esta obra do século XVI põe frente a frente os foliões do Carnaval e os beatos da Quaresma, que vou já mencionar).
Em Portugal, o catolicismo marca esta celebração na terça feira mais perto da lua nova que antecede o período litúrgico da Quaresma, daí ser um feriado móvel.
Repararam na parte da lua nova? Apropriado, não é? No macro da natureza, que não liga grande coisa à liturgia, o Inverno começa a transforma-se em antecâmara da Primavera: os dias começam a ficar mais longos (quem se levanta cedo para deixar crianças em creches/escolas e as tem de ir buscar sente já esta diferença), amarelos começam a despontar nas bermas, nos jardins, nos canteiros...
E esta mudança ecoa não só em nós, que nos deixamos ficar com aquele solzinho, nas costas ou nos pés, que entra pelas janelas e nos vai encontrando e aquecendo o corpo e a alma, como também ecoa num colectivo intuitivo que nos diz, vem aí a Primavera.
Neste colectivo intuitivo, vamos encontrar as práticas de exorcismo do frio, de expulsão do gelo que, através das tradições culturais, dialogam connosco e nos convidam a participar deste ritual de purificação e limpeza. E sim, os excessos fazem parte da ordem de trabalhos. Para limpar uma comunidade e um social, temos de desconstruir e dissolver os limites dessa comunidade e social,  e assim, tabus, conformidades, regras, normas, vão ser pervertidas num clima profano de permissividade! Porque se as regras mantêm o sagrado, então a ausência de regras profana este mesmo sagrado. Daí a folia do gozo, do excesso do prazer, seja comida, sejam bebida, seja sexualidade. Nesta altura em que homens se tornam mulheres e mulheres se tornam o que bem quiserem, vemos a fluidez destas perversões, a expectativa das transgressões, e, a observação da temática do Carnaval de cada ano nos carros alegóricos. Este ano, em Torres Vedras, o tema é "made in Portugal" e eu já ouvi uma família dizer que se vai mascarar de galo de Barcelos. Gosto muito desta dinâmica familiar. E mesmo que este exercício ritualístico de limpeza e celebração não esteja presente para todos os que usam salto alto e próteses postiças, há que reconhecer o seu poder e impacto por mover tantos adeptos zelosos um pouco por todo o mundo. Na próxima lua nova, Portugal vai-se despir de normas e vestir de conceitos transgressores (e provavelmente ofensivos para muitos), e repetir o ritual de folia e crítica social, porque se tudo é permitido, a única lei que é suprema é a da liberdade de expressão.
Como pagã, vejo este fenómeno como uma prática antiga (antecedente em milénios ao encaixe litúrgico cristão) que aprecio observar. Gosto de observar a criatividade das fantasias, o frenesim das festividades, a entrega ao ridículo e o validar desse ridículo enquanto instrumento desinibidor e libertador, as críticas ao político, social, religioso, cultural... Sim. Gosto muito de ver o Carnaval e o efeitos nas pessoas que nele participam. Pessoas com ocupações variadas, com regras e normas que cumprem e esperam ver cumpridas. Estas pessoas que durante um ano (ou no fim de semana anterior...muitas vezes numa loja chinesa perto de casa) procuram por adereços que anulem o "eu" composto em sociedade para se libertarem mascarados de género, bicho, utensílio de cozinha, personagem popular, electrodoméstico, aplique de casa de banho ou outro qualquer elemento do reino mineral, vegetal, animal, tecnológico ou público. Tudo com glitter. Muito glitter, plumas, lantejoulas, rimel, eyeliner,  batom, ruborizador (blush) e perucas.
Quero muito iniciar a minha filha nesta celebração colectiva, porque é o seu primeiro Carnaval, e quero que cresça a aprender que tudo o que é sério, tem que saber ser desconstruído e gozado. Tudo. Só assim crescemos e nos adaptamos às mudanças na nossa vida. Seja ela uma mudança da casa, seja ela uma mudança de estação.
Se me perguntarem se acho o Carnaval uma festividade Pagã, respondo que a premissa vem da mudança natural de estação, e se reporta ao mundo natural e aos seus padrões de mudança, é Pagão. Não a chamamos de Saturnália, não fazemos procissão à Deusa Nerthus (assim chamada pelo romano Tácito), mas neste canto europeu fazemos um reset às vivências sociais mundanas através de máscaras, de brincadeiras, e sentenças de morte ao Entrudo. Este Entrudo, que tem sempre que morrer e ser enterrado, ou seja, definhar e voltar à terra, pode ser visto como o próprio Inverno que leva não só o frio, mas todas as transgressões e maus actos da comunidade que o enterra. É um ritual de exorcismo por isto mesmo. Até porque falar só do gozo, é falar só de metade da ferramenta que é o Carnaval. A outra metade é feita de medo, de susto. As caraças, caretos e máscaras horrendas, com ares de diabos e demónios, também andam à solta nesta altura, e essas também têm um papel importante neste processo de limpeza. Estas figuras afugentam literalmente o que de mau existe nas comunidades, primeiro porque a aparência repele, e depois porque os seus actos brutos e descontrolados vão incorporar essas mesmas acções levadas a cabo por todos os membros da comunidade durante aquele ano que passou. E desta forma nos despedimos do velho ano que morre velho com tudo o que se viveu (bom e menos bom), para abrirmos espaço ao ano novo que nasce das cinzas fertilizadoras do seu antecessor. A fertilidade latente nos campos, que começa a despontar nesta altura, é reavivada com estas cinzas, porque muitos destes rituais incorporam precisamente grandes fogueiras nas suas tradições. Fogueiras que queimam o entrudo e fogueiras que se saltam para queimar e levar tudo o que é velho e já não cresce para que a fertilidade se instale, fogueiras que servem para cozinhar alimentos que vão ser consumidos pelos foliões da comunidade e que vão nutri-los na entrada no novo ano.
Este ano, eu e a minha filha vamos de tigresas com onesies e vamos observar deliciadas o corso de Carnaval que vai passar pela vila. Vamos acender uma vela e marcar com luz esta passagem e limpeza. E vamos tentar seduzir o papá a acompanhar-nos...pronto, talvez para o ano que vem.



*imagem retirada da Wikipédia: (1559) Pieter Bruegel, o Velho: O Combate entre o Carnaval e a Quaresma (Der Kampf zwischen Karneval und Fasten)


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